Capítulo I Do que se conta em primeiro lugar, ou a apresentação do génio
quinta-feira, 3 de novembro de 2016
A história que aqui se contará é semelhante a muitas outras que ocorreram no curso da história. De modo que, poderia à partida não ter relevância. Sucede, porém, que ou o estado do pensamento ao qual chegámos atingiu o seu termo, ou a história do pensamento registá-lo-á como aquele momento em que cada um pôde sair da sua indigência intelectual e proferir e escrever os mais excelsos disparates sem que ninguém os considerasse como tais; antes, todavia, como a suprema força do pensamento em acção.
Foi, pois, neste
estado de letargia intelectual absoluta que surgiu um escritor chamado
Jeremias; um fulano com valências várias em determinadas áreas (ou a virtude de
saber enganar tolos) com uma condição e conhecimentos sociais que o iriam tornar
numa referência da literatura e do pensamento de dizer disparates. Quando
lançou o seu primeiro livro fora acolhido como o grande escritor e intelectual
do país, um homem cuja sabedoria em coisa nenhuma o levara a escrever o absurdo
em sequências de letras que formariam palavras e sequências de palavras que
formariam frases e seguidamente orações e de tudo isto formar-se-iam prefácios,
partes, capítulos, secções, posfácios, e culminaria num livro de coisa alguma,
mas cuja ordenação e o facto de ser publicado levaria a que se viesse a chamar
de livro. Ou, mais concretamente, de obra. Da construção do embuste surgiriam
artigos em revistas de especialidade, dissertações, teses, discussões,
palestras, debates e tantas outras coisas que, podemos dizê-lo, se tornaram
quase um circo no qual para se pertencer só se tinha de escrever o maior
disparate que se pudesse escrever ou dizer.
Jeremias era, com
efeito, talentoso. Não há nada que se nos possa dizer o contrário, porquanto se
para enganar tolos não é preciso muito, para se enganar gente sabida já é
necessária alguma dose de talento na arte da trapaça. E com efeito Jeremias era
um trapaceiro em bruto. Do seu talento surgiram obras, entre muitas outras,
como: A Arte a Partir da Perspectiva
Hermenêutica Secular, uma série de ensaios cujo conteúdo é interpretado
hoje por muitos como «a grande contribuição para o entendimento da arte astral
a partir da matemática dos números quadrados com equivalência nos x e ys» ou
ainda, num dizer de um renomado teórico da literatura e da arte descomparadas,
«o contributo de Jeremias para a arte do saber geométrico é igual aos quadrados
da hipotenusa da hermenêutica contemporânea com ligações articuladas e
estabelecidas numa sabedoria sistemática e totalizante do saber como saber
epistémico horizontal em que, podemos dizer sem pejo, a filosofia se funde com
a matemática da errância e a ciência é vista à luz do saber quimérico, saber
este já hoje enraizado depois dos contributos de outro grande pensador (o
grande Óscar Ruiz Walton), e logo assim toda a contribuição de Jeremias veio
confirmar o que há muito suspeitávamos: pois que a ciência é uma ciência que se
funde com a matemática dos números e uma
hermenêutica das letras nos mais limítrofes saberes da epistemologia
contemporânea»; entre outras, surgiram também as obras: Do Saber e do Dizer em Tempos do Holocausto da Verdade, obra
muito glosada por estudiosos franceses, mas também escreveu romances, cujos, de
resto, são os mais lidos em todo o mundo onde a razão deixou de imperar e a
beleza da estupidez emergiu como a mais sublime arte de interpretar o mundo.
Alguns títulos que ficaram na história são aqueles que fizeram parte de uma
obra sistemática (chamada assim pela sua sistematicidade em reunir coisa
nenhuma), a que o autor lhe conferiu o título: Da Terra dos Homens e das Mulheres. E são estas as obras: O Homem Brincalhão e as suas Bonecas; A Mulher Brincalhona e os suas Bolas de
Futebol; Os Homens que se Chamavam
pelo Nome; As Mulheres que se
Chamavam pelo Nome; e por fim a grande obra-prima desta obra
sistemática; As Mulheres dos Homens e os
Homens das Mulheres que se Chamavam com a Boca. Gloria Victis!
Posto que, mencionadas
algumas das obras saídas da pena do excelso e grandioso e genuinamente magnificente
escritor e pensador Jeremias M. Taveira, talvez nos seja útil perdermo-nos um
pouco na sua história antes de ele vir a ser o renomado, o enorme, o talentoso
e génio com que alguma vez o país tivera o privilégio de ver.
Cumpramos, pois, e
façamos história.
Jeremias nasceu na
cidade de Cabo de Rabos, numa aldeia perto da cidade dos Soldados da Guerra, e
muito próxima da cidade perto dessa mesma, numa família com vários irmãos e
nenhuma irmã, da qual se veio a saber mais tarde não era filho, mas enteado.
Anos mais tarde saber-se-ia que nem enteado era. Pensara-se que fosse adoptado,
mas também não se veio a provar. Assim, Jeremias fora educado por uma família
com vários irmãos sem o serem e com pais que não os seus. Tão rica, porém, que
permitiu a Jeremias conviver com os mais ilustres homens de letras. A família,
tanto quando se sabe pelo seu biógrafo, era igual a tantas outras da Cidades de
Rabos, pelo que, nasceu e cresceu como uma criança normal, excepto a arte para
a trapaça e o seu gosto pelas letras. Aos 8 anos escrevera um poema para a
escolinha, recolhido hoje pelos seus estudiosos e integrado numa antologia
poética com o nome: Poemas Diversos.
Nesta antologia constam também aqueles que são os seus melhores poemas e que,
quando nos for possível, citá-los-emos. De momento, vejamos esse poema que fora
escrito com oito anos de idade e que lhe valeria doravante a sua entrada no
panteão dos génios, por força da sua ex professora e posterior amiga. Ei-lo:
Mulher, mulher, sois
uma
Mulher, mulher, sois
duas
Mulher, mulher, dois
três
Mulher, mulher, sois
quatro
Mulher, mulher, sois
cinco
Assim, mulher, sois
todos os números.
Este poema valer-lhe-ia o prémio
de poesia para a juventude precoce. Fora o seu primeiro prémio e
vislumbrava-se-lhe já o talento que viria a consagrar o génio. Como se
verifica, Jeremias tinha já uma propensão para articular os números com as
letras, e fora a partir desta propensão que ele viera a construir a sua obra e
os epítetos de um intelectual com raízes de matemático, mas igualmente um
lógico, e até, dizem alguns, filósofo. Quem estivera atento, verificará que no terceiro
verso Jeremias não escreve «sois» mas antes «dois». Este aspecto fora notado
pelos seus estudiosos como «a capacidade de subverter toda a lógica e
transformar a inteligibilidade das coisas» naquilo que podemos considerar «a
tendência societal afim ao absurdo». Outros apenas viram naquele «dois» um lapsus calami. Ao afirmá-lo,
expuseram-se às críticas dos jeremianos, que prontamente vieram em defesa de
Jeremias asseverando que o «dois não é senão o sinal da genialidade de
Jeremias, e que a proximidade fonética não pode ser interpretada à luz da
linguística nem tão-pouco da teoria literária contemporâneas mas antes à luz da
nova hermenêutica da matemática contemporânea cuja raiz, como bem sabemos, está
na base da nova epistemologia horizontal com raízes quadradas» (abra-se um
parêntesis para se dizer que «raízes quadradas» não é, neste sentido, aquelas
cujo índice é 2, mas antes que tem base numa raiz que é quadrada, entendendo-se
quadrado como o sistema bipolariano (do geómetra Bipolar) cuja epistemologia
veio modificar a tese segundo a qual todo o x é um x mesmo dentro de um sistema
em que x é um x). Estas discussões ainda hoje se mantêm. Mas eis outro poema
dessa antologia:
Homem, homem, sois um
Homem, homem, sois
dois
Homem, homem, sois
três
Homem, homem, sois
quatro
Homem, homem, sois
cinco
Homem, homem sois todos
os números
Este poema, que fora publicado
não quando ele tinha 8 anos, mas já com os seus 28 anos e meio, veio acirrar
ainda mais a polémica de se saber se o «dois» escrito no seu primeiro poema era
ou não resultado de um lapsus callami,
ou se era fruto da sua genialidade de subverter a lógica, segundo os
jeremianos. Tememos, aqui para nós, que Jeremias repetiu a proeza unicamente a fim de confundir os seus estudiosos e enganar os seus leitores. A
partir do seu primeiro poema e consequente prémio, Jeremias foi surgindo nas
mais variadas revistas como «o pequeno Mozart das letras». Em casa, porém,
Jeremias era apenas o Jeremias, e os seus pais, ou quem cuidava dele, queriam
somente que Jeremias tivesse sucesso na vida, mas sempre com os pés bem assentes
no chão. Quando os pais lhe diziam isto, Jeremias respondia-lhes:
– Meus pais, o chão
não é senão um artefacto para nos distrair do essencial da vida, pois que, como
bem sabeis, nós levitamos numa onda gravitacional cuja galáxia está lá onde
param todos aqueles que nunca estiveram aqui; e por isso, a terra não é senão
um número quadrado. – Jeremias padecia de uma atracção por quadrados e por
números e por palavras e por tudo aquilo que lhe pudesse conferir ar de
superioridade intelectual aos olhos de quem era mais inteligente do que ele.
Jeremias cresceria como o «menino Mozart» aos olhos do mundo e das letras e dos
estudiosos mas em casa foi sempre o Jeremias que se cagava todo porque havia um
mosca no seu quarto, que se mijava todo a ver um filme de terror, e que, mais
do que isso, cagava e mijava como todos os seus irmãos. Enfim, Jeremias era o
Jemi para os irmãos. Desde criança que se achava especial e quem o acompanhava
alimentava essa “especialidade”, fossem os pais ou irmãos, outros familiares ou
amigos, e incentivavam-no em tudo que ele queria fazer. Quando, pois, aos oito
anos recebera o prémio pela poesia, Jeremias sentiu-se mais especial ainda,
mais diferente dos demais que o rodeavam, e adotou desde então uma postura não
apenas snobe e pedante, mas igualmente distanciada, escolhendo escrupulosamente
as pessoas com quem se acompanhar. A partir dessa altura conviveria apenas com
os meninos mais ricos da Cidade de Rabos e colheria o respeito de todos eles,
inclusive e principalmente dos seus pais. Andava sempre com um bloco de notas e
caneta consigo para, segundo dizia, escrever o mundo. Escrevia sempre que
podia. Mesmo hoje, já adulto e premiado, quando vai às televisões leva sempre
consigo o bloco e escreve, mesmo quando o entrevistador lhe está a fazer
perguntas. Alimentou assim a ideia de que é um homem que está em constante
progresso de escrita. Desses blocos, hoje reunidos e editados, encontram-se
passagens como estas das suas primeiras anotações:
«ah, hoje o mundo
pesa-me nas costas porque não trago mochila»
Ou ainda este poema
mais recente
«Enlouqueço porque
estou sóbrio
A sobriedade é uma
chatice
Uma maldita faísca
que acende a loucura
E eu talvez já não
tenha cura
Ah, queria ser o
mundo sob uma cascata de vinho.»
Seu percurso
académico foi notável. Concluíra a sua licenciatura com média de 19 e concluíra
o doutoramento aos vinte e seis anos. Sua tese fora: a Hermenêutica lógica: contribuição para a aclaração do debate entre
os que concordam e os que discordam a partir da genialidade de quem escreve.
Desta passagem pelo mundo académico surtiram diversos conhecimentos e o convite
para leccionar. Desde então Jeremias tem produzido obra a um livro por ano,
às vezes mais. Obra elogiada pela crítica dentro e fora do país, elevado a
«maior intelectual da actualidade» (Afonso Marques), e «um dos maiores
escritores do nosso século» (Paulo Cruz de Melo) a sua obra tem sido com efeito
objecto dos maiores louvores em toda a parte. Houvera quem dissesse que «não há
hoje literatura senão a de Jeremias M. Taveira» (fora proferida esta sentença
pelo doutor professor e académico ilustre João da Gama Tavares, um eminente
professor de literatura descomparada). Com efeito, Jeremias tem sido proposto
como próximo nobel da literatura, e há quem afirma que possa mesmo ganhar o
nobel da física, porquanto e mau grado nunca ter escrito sobre física, dizem, a
sua obra está repleta de nuances físicas, mais não seja, afirmam outros tantos,
porque os seus livros são em formato físico (outras razões mencionar-se-ão mais
abaixo), ao invés de outros que publicam em formato ebook, a moda do momento.
Jeremias é conservador, neste sentido, optando, desde há imenso tempo e
porventura mesmo antes de ter nascido, por publicar o livro em formato físico
porque, segundo o dissera numa entrevista, «os livros têm cheiro e são a essência
do mundo» pois «não há mundo sem livros, assim como não há mundo sem a
gravidade». Esta declaração levou académicos a ver nela como que a confirmação
de que existe gravidade e por conseguinte têm aventado a possibilidade de
Jeremias M. Taveira poder ganhar o prémio nobel da Física. É impossível
pensar-se hoje o mundo e a vida sem se passar pelas obras de Jeremias M.
Taveira.
O nosso escritor
genial publicara o seu primeiro livro tinha então apenas dez anos. Fora um
pequeno livro de poemas, mas que o catapultou de uma forma nunca vista na
história da literatura para o mundo imediato da mesma. Dera-lhe o título de Poemas em Verso, um título muito
original, dissera a crítica. Ao primeiro seguir-se-ia o segundo, segundo supomos,
e supomos bem, a menos que a matemática do Jeremias nos contradiga, e tinha
como título: A Prosa em Forma de História.
Era um romance em que o autor se lançava às deambulações metafisicas sobre a
morte de quem morre, segundo dissera o próprio na apresentação, e cuja
conclusão era que a morte era uma forma histórica de verificação metafisica,
donde que a morte não era mais do que as letras m, o, r, t, e. Assim, conclui:
todos morremos. As televisões registaram essa apresentação e o momento em que a
plateia se levantou a aplaudir o imberbe escritor, que escrevia como um adulto.
Tinha então catorze anos. A apresentação conta já com três milhões de
visualizações no Youtube. Seguir-se-ia um romance mais maduro em cujo o autor
escreve sobre a possibilidade céptica de o mundo ser um número redondo de que
nós não temos conhecimento. Partindo do número zero, o autor leva-nos pela
história de um homem que passeia no espaço dos números onde as vicissitudes das
equações são a intransponibilidade metafísica e epistémica do mundo. Assim,
conclui, o mundo é um número redondo. Choveram elogios por toda a parte a esta
obra magistral. Jeremias consagrara-se definitivamente como o grande génio da
literatura, mas agora também da matemática e da astrofísica e da física, e
houve quem dissesse que mesmo da química, se tal fosse possível, até da
biologia, segundo outros. A este livro dera-lhe o título: Zero. Seguir-se-iam
outros dos quais falaremos mais para a frente.
Casara-se aos vinte e nove anos com sua esposa e divorciara-se aos vinte e nove e meio com vista
a casar-se com o seu amigo de longa data e paixão secreta John Maria de Castelo
e Sá Costa, com quem tivera dois filhos, igualmente professor universitário,
leccionando teoria da literatura descomparada, hermenêutica descomparada,
análise textual descomparada, e ainda literatura da matemática descomparada.
John era um pequeno génio, em nada igualável ao génio do seu marido, cuja preocupação
académica era a de tentar construir uma hermenêutica epistemologicamente
relevante para o contributo da leitura da tabuada. Tal como seu marido,
contribuíra já com alguns estudos académicos, os quais, pouco relevantes, não
se mencionarão.
Jeremias era pois um
homem feliz. Tinha o mundo a seus pés, e o mundo era dele, segundo pensava.
edit
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