Capítulo I Do que se conta em primeiro lugar, ou a apresentação do génio




A história que aqui se contará é semelhante a muitas outras que ocorreram no curso da história. De modo que, poderia à partida não ter relevância. Sucede, porém, que ou o estado do pensamento ao qual chegámos atingiu o seu termo, ou a história do pensamento registá-lo-á como aquele momento em que cada um pôde sair da sua indigência intelectual e proferir e escrever os mais excelsos disparates sem que ninguém os considerasse como tais; antes, todavia, como a suprema força do pensamento em acção.
Foi, pois, neste estado de letargia intelectual absoluta que surgiu um escritor chamado Jeremias; um fulano com valências várias em determinadas áreas (ou a virtude de saber enganar tolos) com uma condição e conhecimentos sociais que o iriam tornar numa referência da literatura e do pensamento de dizer disparates. Quando lançou o seu primeiro livro fora acolhido como o grande escritor e intelectual do país, um homem cuja sabedoria em coisa nenhuma o levara a escrever o absurdo em sequências de letras que formariam palavras e sequências de palavras que formariam frases e seguidamente orações e de tudo isto formar-se-iam prefácios, partes, capítulos, secções, posfácios, e culminaria num livro de coisa alguma, mas cuja ordenação e o facto de ser publicado levaria a que se viesse a chamar de livro. Ou, mais concretamente, de obra. Da construção do embuste surgiriam artigos em revistas de especialidade, dissertações, teses, discussões, palestras, debates e tantas outras coisas que, podemos dizê-lo, se tornaram quase um circo no qual para se pertencer só se tinha de escrever o maior disparate que se pudesse escrever ou dizer.
Jeremias era, com efeito, talentoso. Não há nada que se nos possa dizer o contrário, porquanto se para enganar tolos não é preciso muito, para se enganar gente sabida já é necessária alguma dose de talento na arte da trapaça. E com efeito Jeremias era um trapaceiro em bruto. Do seu talento surgiram obras, entre muitas outras, como: A Arte a Partir da Perspectiva Hermenêutica Secular, uma série de ensaios cujo conteúdo é interpretado hoje por muitos como «a grande contribuição para o entendimento da arte astral a partir da matemática dos números quadrados com equivalência nos x e ys» ou ainda, num dizer de um renomado teórico da literatura e da arte descomparadas, «o contributo de Jeremias para a arte do saber geométrico é igual aos quadrados da hipotenusa da hermenêutica contemporânea com ligações articuladas e estabelecidas numa sabedoria sistemática e totalizante do saber como saber epistémico horizontal em que, podemos dizer sem pejo, a filosofia se funde com a matemática da errância e a ciência é vista à luz do saber quimérico, saber este já hoje enraizado depois dos contributos de outro grande pensador (o grande Óscar Ruiz Walton), e logo assim toda a contribuição de Jeremias veio confirmar o que há muito suspeitávamos: pois que a ciência é uma ciência que se funde com a matemática dos números e uma  hermenêutica das letras nos mais limítrofes saberes da epistemologia contemporânea»; entre outras, surgiram também as obras: Do Saber e do Dizer em Tempos do Holocausto da Verdade, obra muito glosada por estudiosos franceses, mas também escreveu romances, cujos, de resto, são os mais lidos em todo o mundo onde a razão deixou de imperar e a beleza da estupidez emergiu como a mais sublime arte de interpretar o mundo. Alguns títulos que ficaram na história são aqueles que fizeram parte de uma obra sistemática (chamada assim pela sua sistematicidade em reunir coisa nenhuma), a que o autor lhe conferiu o título: Da Terra dos Homens e das Mulheres. E são estas as obras: O Homem Brincalhão e as suas Bonecas; A Mulher Brincalhona e os suas Bolas de Futebol; Os Homens que se Chamavam pelo Nome; As Mulheres que se Chamavam pelo Nome; e por fim a grande obra-prima desta obra sistemática; As Mulheres dos Homens e os Homens das Mulheres que se Chamavam com a Boca. Gloria Victis!
Posto que, mencionadas algumas das obras saídas da pena do excelso e grandioso e genuinamente magnificente escritor e pensador Jeremias M. Taveira, talvez nos seja útil perdermo-nos um pouco na sua história antes de ele vir a ser o renomado, o enorme, o talentoso e génio com que alguma vez o país tivera o privilégio de ver.
Cumpramos, pois, e façamos história.
Jeremias nasceu na cidade de Cabo de Rabos, numa aldeia perto da cidade dos Soldados da Guerra, e muito próxima da cidade perto dessa mesma, numa família com vários irmãos e nenhuma irmã, da qual se veio a saber mais tarde não era filho, mas enteado. Anos mais tarde saber-se-ia que nem enteado era. Pensara-se que fosse adoptado, mas também não se veio a provar. Assim, Jeremias fora educado por uma família com vários irmãos sem o serem e com pais que não os seus. Tão rica, porém, que permitiu a Jeremias conviver com os mais ilustres homens de letras. A família, tanto quando se sabe pelo seu biógrafo, era igual a tantas outras da Cidades de Rabos, pelo que, nasceu e cresceu como uma criança normal, excepto a arte para a trapaça e o seu gosto pelas letras. Aos 8 anos escrevera um poema para a escolinha, recolhido hoje pelos seus estudiosos e integrado numa antologia poética com o nome: Poemas Diversos. Nesta antologia constam também aqueles que são os seus melhores poemas e que, quando nos for possível, citá-los-emos. De momento, vejamos esse poema que fora escrito com oito anos de idade e que lhe valeria doravante a sua entrada no panteão dos génios, por força da sua ex professora e posterior amiga. Ei-lo:
Mulher, mulher, sois uma
Mulher, mulher, sois duas
Mulher, mulher, dois três
Mulher, mulher, sois quatro
Mulher, mulher, sois cinco
Assim, mulher, sois todos os números.
Este poema valer-lhe-ia o prémio de poesia para a juventude precoce. Fora o seu primeiro prémio e vislumbrava-se-lhe já o talento que viria a consagrar o génio. Como se verifica, Jeremias tinha já uma propensão para articular os números com as letras, e fora a partir desta propensão que ele viera a construir a sua obra e os epítetos de um intelectual com raízes de matemático, mas igualmente um lógico, e até, dizem alguns, filósofo. Quem estivera atento, verificará que no terceiro verso Jeremias não escreve «sois» mas antes «dois». Este aspecto fora notado pelos seus estudiosos como «a capacidade de subverter toda a lógica e transformar a inteligibilidade das coisas» naquilo que podemos considerar «a tendência societal afim ao absurdo». Outros apenas viram naquele «dois» um lapsus calami. Ao afirmá-lo, expuseram-se às críticas dos jeremianos, que prontamente vieram em defesa de Jeremias asseverando que o «dois não é senão o sinal da genialidade de Jeremias, e que a proximidade fonética não pode ser interpretada à luz da linguística nem tão-pouco da teoria literária contemporâneas mas antes à luz da nova hermenêutica da matemática contemporânea cuja raiz, como bem sabemos, está na base da nova epistemologia horizontal com raízes quadradas» (abra-se um parêntesis para se dizer que «raízes quadradas» não é, neste sentido, aquelas cujo índice é 2, mas antes que tem base numa raiz que é quadrada, entendendo-se quadrado como o sistema bipolariano (do geómetra Bipolar) cuja epistemologia veio modificar a tese segundo a qual todo o x é um x mesmo dentro de um sistema em que x é um x). Estas discussões ainda hoje se mantêm. Mas eis outro poema dessa antologia:
Homem, homem, sois um
Homem, homem, sois dois
Homem, homem, sois três
Homem, homem, sois quatro
Homem, homem, sois cinco
Homem, homem sois todos os números

Este poema, que fora publicado não quando ele tinha 8 anos, mas já com os seus 28 anos e meio, veio acirrar ainda mais a polémica de se saber se o «dois» escrito no seu primeiro poema era ou não resultado de um lapsus callami, ou se era fruto da sua genialidade de subverter a lógica, segundo os jeremianos. Tememos, aqui para nós, que Jeremias repetiu a proeza unicamente a fim de confundir os seus estudiosos e enganar os seus leitores. A partir do seu primeiro poema e consequente prémio, Jeremias foi surgindo nas mais variadas revistas como «o pequeno Mozart das letras». Em casa, porém, Jeremias era apenas o Jeremias, e os seus pais, ou quem cuidava dele, queriam somente que Jeremias tivesse sucesso na vida, mas sempre com os pés bem assentes no chão. Quando os pais lhe diziam isto, Jeremias respondia-lhes:
– Meus pais, o chão não é senão um artefacto para nos distrair do essencial da vida, pois que, como bem sabeis, nós levitamos numa onda gravitacional cuja galáxia está lá onde param todos aqueles que nunca estiveram aqui; e por isso, a terra não é senão um número quadrado. – Jeremias padecia de uma atracção por quadrados e por números e por palavras e por tudo aquilo que lhe pudesse conferir ar de superioridade intelectual aos olhos de quem era mais inteligente do que ele. Jeremias cresceria como o «menino Mozart» aos olhos do mundo e das letras e dos estudiosos mas em casa foi sempre o Jeremias que se cagava todo porque havia um mosca no seu quarto, que se mijava todo a ver um filme de terror, e que, mais do que isso, cagava e mijava como todos os seus irmãos. Enfim, Jeremias era o Jemi para os irmãos. Desde criança que se achava especial e quem o acompanhava alimentava essa “especialidade”, fossem os pais ou irmãos, outros familiares ou amigos, e incentivavam-no em tudo que ele queria fazer. Quando, pois, aos oito anos recebera o prémio pela poesia, Jeremias sentiu-se mais especial ainda, mais diferente dos demais que o rodeavam, e adotou desde então uma postura não apenas snobe e pedante, mas igualmente distanciada, escolhendo escrupulosamente as pessoas com quem se acompanhar. A partir dessa altura conviveria apenas com os meninos mais ricos da Cidade de Rabos e colheria o respeito de todos eles, inclusive e principalmente dos seus pais. Andava sempre com um bloco de notas e caneta consigo para, segundo dizia, escrever o mundo. Escrevia sempre que podia. Mesmo hoje, já adulto e premiado, quando vai às televisões leva sempre consigo o bloco e escreve, mesmo quando o entrevistador lhe está a fazer perguntas. Alimentou assim a ideia de que é um homem que está em constante progresso de escrita. Desses blocos, hoje reunidos e editados, encontram-se passagens como estas das suas primeiras anotações:
«ah, hoje o mundo pesa-me nas costas porque não trago mochila»
Ou ainda este poema mais recente
«Enlouqueço porque estou sóbrio
A sobriedade é uma chatice
Uma maldita faísca que acende a loucura
E eu talvez já não tenha cura
Ah, queria ser o mundo sob uma cascata de vinho.»

Seu percurso académico foi notável. Concluíra a sua licenciatura com média de 19 e concluíra o doutoramento aos vinte e seis anos. Sua tese fora: a Hermenêutica lógica: contribuição para a aclaração do debate entre os que concordam e os que discordam a partir da genialidade de quem escreve. Desta passagem pelo mundo académico surtiram diversos conhecimentos e o convite para leccionar. Desde então Jeremias tem produzido obra a um livro por ano, às vezes mais. Obra elogiada pela crítica dentro e fora do país, elevado a «maior intelectual da actualidade» (Afonso Marques), e «um dos maiores escritores do nosso século» (Paulo Cruz de Melo) a sua obra tem sido com efeito objecto dos maiores louvores em toda a parte. Houvera quem dissesse que «não há hoje literatura senão a de Jeremias M. Taveira» (fora proferida esta sentença pelo doutor professor e académico ilustre João da Gama Tavares, um eminente professor de literatura descomparada). Com efeito, Jeremias tem sido proposto como próximo nobel da literatura, e há quem afirma que possa mesmo ganhar o nobel da física, porquanto e mau grado nunca ter escrito sobre física, dizem, a sua obra está repleta de nuances físicas, mais não seja, afirmam outros tantos, porque os seus livros são em formato físico (outras razões mencionar-se-ão mais abaixo), ao invés de outros que publicam em formato ebook, a moda do momento. Jeremias é conservador, neste sentido, optando, desde há imenso tempo e porventura mesmo antes de ter nascido, por publicar o livro em formato físico porque, segundo o dissera numa entrevista, «os livros têm cheiro e são a essência do mundo» pois «não há mundo sem livros, assim como não há mundo sem a gravidade». Esta declaração levou académicos a ver nela como que a confirmação de que existe gravidade e por conseguinte têm aventado a possibilidade de Jeremias M. Taveira poder ganhar o prémio nobel da Física. É impossível pensar-se hoje o mundo e a vida sem se passar pelas obras de Jeremias M. Taveira.
O nosso escritor genial publicara o seu primeiro livro tinha então apenas dez anos. Fora um pequeno livro de poemas, mas que o catapultou de uma forma nunca vista na história da literatura para o mundo imediato da mesma. Dera-lhe o título de Poemas em Verso, um título muito original, dissera a crítica. Ao primeiro seguir-se-ia o segundo, segundo supomos, e supomos bem, a menos que a matemática do Jeremias nos contradiga, e tinha como título: A Prosa em Forma de História. Era um romance em que o autor se lançava às deambulações metafisicas sobre a morte de quem morre, segundo dissera o próprio na apresentação, e cuja conclusão era que a morte era uma forma histórica de verificação metafisica, donde que a morte não era mais do que as letras m, o, r, t, e. Assim, conclui: todos morremos. As televisões registaram essa apresentação e o momento em que a plateia se levantou a aplaudir o imberbe escritor, que escrevia como um adulto. Tinha então catorze anos. A apresentação conta já com três milhões de visualizações no Youtube. Seguir-se-ia um romance mais maduro em cujo o autor escreve sobre a possibilidade céptica de o mundo ser um número redondo de que nós não temos conhecimento. Partindo do número zero, o autor leva-nos pela história de um homem que passeia no espaço dos números onde as vicissitudes das equações são a intransponibilidade metafísica e epistémica do mundo. Assim, conclui, o mundo é um número redondo. Choveram elogios por toda a parte a esta obra magistral. Jeremias consagrara-se definitivamente como o grande génio da literatura, mas agora também da matemática e da astrofísica e da física, e houve quem dissesse que mesmo da química, se tal fosse possível, até da biologia, segundo outros. A este livro dera-lhe o título: Zero. Seguir-se-iam outros dos quais falaremos mais para a frente.
Casara-se aos vinte e nove anos com sua esposa e divorciara-se aos vinte e nove e meio com vista a casar-se com o seu amigo de longa data e paixão secreta John Maria de Castelo e Sá Costa, com quem tivera dois filhos, igualmente professor universitário, leccionando teoria da literatura descomparada, hermenêutica descomparada, análise textual descomparada, e ainda literatura da matemática descomparada. John era um pequeno génio, em nada igualável ao génio do seu marido, cuja preocupação académica era a de tentar construir uma hermenêutica epistemologicamente relevante para o contributo da leitura da tabuada. Tal como seu marido, contribuíra já com alguns estudos académicos, os quais, pouco relevantes, não se mencionarão.
Jeremias era pois um homem feliz. Tinha o mundo a seus pés, e o mundo era dele, segundo pensava.





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